quarta-feira, 20 de julho de 2011

Para ver, ouvir e jogar

Com influência dos games e da internet, os livros para tablets oferecem uma nova experiência de leitura
DANILO VENTICINQUE
Bettmann/CORBIS, divulgação (8) e Shutterstock (2)
Na passagem da era analógica para a digital, poucos produtos mudaram tão pouco quanto o livro. Os e-books já são um sucesso, sem dúvida: nos Estados Unidos, o formato digital já é o mais vendido, superando os livros de capa dura, brochura e de bolso. Mas, até agora, dispositivos como o leitor digital Kindle, da Amazon, oferecem ao leitor uma experiência quase idêntica à dos livros de papel: letras pretas sobre um fundo branco, como o alemão Johannes Gutenberg concebeu há mais de cinco séculos e meio. A nova safra de livros para o iPad pretende revolucionar esse formato e transformar o hábito da leitura, incorporando vídeo e games aos textos e usando a capacidade multimídia dos tablets.
Nos últimos meses, dois grandes lançamentos interativos despertaram a atenção (e a euforia) das editoras para o potencial dos livros interativos. No campo da não ficção, o grande destaque foi o aplicativo Our Choice, continuação do documentário Uma verdade inconveniente, do ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore. Desenvolvido por Gore em parceria com o designer Mike Matas, Our Choice é organizado em capítulos, como um livro tradicional. Mas cada capítulo contém uma série de conteúdos interativos, áudio e fotos em alta defi-nição, que podem ser ampliadas pelo leitor com um toque dos dedos. Os 19 capítulos de Our Choice também têm embutidos mais de uma hora de documentário. Um filme dentro do livro.
No campo da literatura, o aplicativo The Waste Land, baseado no poema homônimo de T.S. Eliot, demonstrou que mesmo textos consagrados têm algo a ganhar com a chegada da interatividade. Para desbravar um dos maiores e mais enigmáticos poemas do sécu-lo XX, o leitor conta com explicações para cada verso ao alcance dos dedos, sem prejudicar o fluxo da leitura. Entrevistas com gran-des escritores e críticos literários ajudam a esclarecer a importância do poema e do autor para a história da literatura. Os leitores que já são conhecedores e entusiastas de Eliot encontram outros atrativos, como duas gravações do poema na voz do autor e uma repro-dução de anotações feitas pelo poeta Ezra Pound nos originais de Eliot. O aplicativo foi criado em uma parceria da empresa de con-teúdo digital Touch Press com a editora britânica Faber & Faber. “‘The Waste Land’ é o poema ideal para ser transformado em apli-cativo porque é um texto curto sobre o qual há muito a ser dito”, afirma o cientista americano Theodore Gray, um dos fundadores da Touch Press. “Nós acreditamos que, acessando o conteúdo do aplicativo, o leitor vai compreender melhor e admirar mais o texto de Eliot do que se tivesse acesso a ele apenas no papel.”
George Douglas
INTERAÇÃO 
1. O ex-vice-presidente americano Al Gore, idealizador do aplicativo Our Choice 2. Com a geolocalização do iPad, os usuários podem ver onde estão em uma imagem aérea da Terra 3. Infográficos interativos trazem dados sobre poluição 4. Para entender o funcionamento da energia eólica, o leitor assopra no microfone 5. Todas as imagens podem ser ampliadas
Para textos clássicos como o de Eliot, reunir conteúdo multimídia e anotações de críticos parece ser a solução ideal para cativar o público no iPad. Mas há um limite para o grau de interatividade que deve ser oferecido ao leitor. Seria temerário transformar um texto consagrado em game ou infográfico 3D, sob o risco de deturpar a obra. Por isso, editoras interessadas em explorar ao máximo as funções multimídia dos tablets passaram a operar também do modo inverso. Além de converter para o formato digital textos já publicados no papel, a Touch Press encomenda a autores textos inéditos, criados exclusivamente para se adequar ao enorme poten-cial do conteúdo interativo.
O exemplo mais bem-sucedido desse modelo é o aplicativo Solar System, do astrônomo Marcus Chown, consultor da revista New Scientist. Para desenvolver o livro, foi criada uma equipe multidis-ciplinar de designers e programadores, na qual o autor era apenas mais um elemento. “Como autor de livros de papel, costumava ter controle total”, afirma Chown. “Trabalhar em Solar System foi uma experiência totalmente diferente. Alguns assuntos não en-traram por falta de imagens atraentes. Outros, que eu não colocaria no livro, entraram por render uma boa experiência interativa.” Os leitores parecem ter gostado: lançado no final do ano passado, o aplicativo já vendeu mais de 50 mil cópias por US$ 13,99 e ganhou versões em japonês e alemão.
Apesar da reação surpresa e entusiasmada do público e do mercado aos aplicativos recém-lançados, a história do livro interativo co-meçou muito antes dos tablets. Na década de 1990, o americano Bob Stein foi um dos fundadores da Voyager, uma empresa que criava livros interativos em CD-ROM. Entre seus principais lançamentos estava a versão multimídia de O parque dos dinossauros. O livro criou burburinho na ocasião, mas a empreitada não foi bem-sucedida. O motivo? “As pessoas não estavam interessadas em ler textos longos na tela do computador, e a chegada da internet e seu conteúdo gratuito transformou os CD-ROMs em mau negócio”, diz Stein.
  Getty Images
ACERVO 
1. O poeta T.S. Eliot inspirou o aplicativo The Waste Land, baseado em seu poema mais célebre 2. Na tela inicial, o leitor escolhe entre o texto e outros conteúdos 3. Basta clicar em um verso para ter acesso a anotações críticas 4. Entre os vídeos, há uma interpretação do poema pela atriz Fiona Shaw. 5. Entrevistas em vídeo completam o pacote
Agora, o cenário parece ter mudado. A leitura nos tablets é bem mais confortável que na tela do computador e a venda de conte-údo em lojas virtuais como a Apple Store barateia e facilita a compra das obras. Stein faz uma ressalva: “Os produtos que estão sendo lançados agora ainda têm um conceito parecido com os livros tradicionais e um sistema de pagamento semelhante. No futu-ro, as pessoas vão querer livros que envolvam interação social e estarão mais inclinadas a assinar serviços do que a pagar por produ-tos individuais”. Na corrida para a interatividade, alguns gêneros de livros saíram na frente. Usuários da loja de aplicativos da Apple já encontram dezenas de aplicativos infantis, que misturam áudio, vídeo e elementos de games ao texto. É uma estratégia das edito-ras para fisgar a atenção de um público acostumado a consumir conteúdo interativo desde os primeiros anos de vida. Um dos pri-meiros aplicativos do gênero em português é A Menina do Narizinho Arrebitado, baseado no livro homônimo de Monteiro Lobato. “Um livro interativo não é um jogo, mas torna a leitura mais divertida”, afirma Mauro Palermo, diretor da Globo Livros. “Toda a parte lúdica está ligada inteiramente ao texto.” Para a Bienal do Rio de Janeiro, em setembro, a editora deverá lançar outro título para iPad. A divisão infantil da Companhia das Letras também promete um lançamento para o segundo semestre.
Outra área em que os livros interativos já fazem sucesso é a educação. Nos Estados Unidos, a editora digital Inkling revolucionou o ensino de biologia ao transformar o Brooker biology, um livro-texto de 1.438 páginas, em uma série de aplicativos (um para cada capítulo) com infográficos em 3D, vídeos e testes interativos de aprendizado. Fundada por Matt MacInnis, um engenheiro formado em Harvard e ex-funcionário da Apple, a empresa quer chegar aos 100 aplicativos até agosto. Seus produtos já foram adotados por universidades consagradas, como a Brown.
No Brasil, os livros digitais chegaram à educação infantil com O cidadão de papel, um livro de Gilberto Dimenstein sobre direitos humanos muito adotado em salas de aula. A versão digital traz vídeos, infográficos e tabelas com estatísticas que são atualizadas automaticamente. “À medida que as escolas e universidades passarem a adotar esse tipo de aplicativo e subsidiar tablets para seus alunos, as editoras de livros educativos terão mais oportunidades”, afirma Youssef Mourad, da Digital Pages, empresa responsável pela migração de O cidadão de papel para o iPad.
Na corrida rumo à interatividade, os livros infantis e acadêmicos saíram na frente
Apesar das experiências de sucesso em alguns gêneros, outros ainda são um desafio para o mercado. “Não sabemos o que fazer para transformar um romance em algo interativo”, afirma Theodore Gray, da Touch Press. Para ele, os romances são livros que continuarão a fazer sucesso em leitores digitais como o Kindle, sem dar origem a aplicativos multimídia. A previsão de Bob Stein é mais sombria: “Se os romances não se tornarem interativos, correrão o risco de se tornar um gênero pouco popular, como a poesia”. Pode ser, mas se o cinema e os videogames não tornaram obsoleta a experiência clássica de leitura, é improvável que a fusão dos dois em livros digitais consiga fazê-lo.

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